MERCADO Os autores apresentam um novo conceito a serincorporado à prática política e que tem raiz nos pensamentos deChiara Lubich e do papa Francisco

 

Matias Mattalini* e Irene Duffard**

* Licenciado em Filosofia e mestre em Políticas Públicas e Governo. É docente-pesquisador da Universidade Nacional de Lanús e copresidente do MPpU na Argentina.

 

** Licenciada em Relações Internacionais e Mestre em Diversidade Cultural. É membro da equipe do Laboratório de Inovação Pública da Província de Neuquén e presidenta do Movimento Político pela Unidade (MPpU) na Argentina.

 

Font: Cidade Nova | Maio 2023 – Política: O amor dos amores

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CHIARA LUBICH mostrou a importância e a potência da fraternidade como conceito e como princípio programático. Fundadora do Movimento Político pela Unidade (MPpU), ela sustentava que a fraternidade modifica o método de fazer política, tendo essa o diálogo, a reciprocidade e o amor como valores de fundo para cada ação ou decisão. Chiara foi uma mulher que redescobriu a fraternidade como método, quer dizer, como um caminho que leva a um lugar com, parae entre todos.

Ela nasceu em Trento (norte da Itália) e provinha de uma linhagem que se originou próximo a fronteiras geográficas, linguísticas e em pleno conflito bélico, pois seus antepassados viveram durante o Império austro-húngaro. Marcadas pelas diferenças, sua vida e sua missão se fundamentaram na busca da unidade, que assume o conflito e busca a compreensão mútua, tendo em vista vivenciar a fraternidade universal.

Então, como dar vida à fraternidade na política como propõe Chiara? Ela sabia que as respostas não estavam nos gabinetes, mas sim nas pessoas que se animam a  sonhar  e  construir um mundo novo. Por isso, ela afirmou:

Para dar ao mundo a fraternidade que gera uma unidade espiritual, garantia da unidade política, econômica etc., não faltam os instrumentos. Basta saber reconhecê-los. Um, cuja eficácia ainda não foi descoberta, é o surgimento no mundo cristão, depois dasprimeiras décadas do século 20, de dezenas e dezenas de movimentos que, como uma espécie de rede, unem os povos, as culturas e asdiversidades: são quase um sinal de que o mundo poderia converter-se em uma casa de nações, porque já o é por meio dessas realidades, se bem que ainda em nível de laboratório.

Ao tentar ir mais além dos limites do paradigma patriarcal que dá marco à  fraternidade  como  conceito,  a  pergunta  que  surge  é: a irmandade, onde nasce? Faz um tempo, sobretudo durante o século 20 e início do 21, desenvolveram-see visibilizaram-se diversos coletivos de mulheres em um momento de diferentes lutas em  favor  do  reconhecimento dedireitos. Nessa linha, modificaram-se – e continuam modificando-se – algumas estruturas patriarcais e anacrônicas, egerou-se uma massa crítica (muito heterogênea), conhecida como “perspectiva de gênero”. A intenção deste artigo “em nível de laboratório”, como diria Chiara, é desvelar a irmandade e colocá-la em diálogo com a fraternidade.

Faz um tempo, por ocasião de uma conversação sobre práticas políticas, um dos participantes afirmou: “a irmandade é uma invenção dos feminismos recalcitrantes e nada tem a ver com o espírito cristão”. Ele apoiava essa afirmação com base em uma experiência negativa, vivida no Dia Internacional  da  Mulher,  quando um grupo de mulheres, em meio à marcha que se realizou na sua cidade, vandalizou uma igreja católica, agredindo, inclusive, quem estava no seu interior. A resposta que ele recebeu por parte daqueles que estavam presentes foi bastante variada. Alguns apoiaram  a  afirmação e outros mostraram-se bem mais críticos. Teveuma intervenção que vale a pena ressaltar a título de reflexão: “a sua experiência é a melhor confirmação de que a irmandade é tãohumana quanto a fraternidade, porque o conflito é inerente à condição humana”. E acrescentou: “a fraternidade e a sororidade não são fins a serem alcançados,  mas  sim  expressões do conflito que pressupõe ser irmãos e irmãs, ou você vai dizer que não existemexperiências de grupos de homens que vandalizaram e, inclusive, assassinaram comunidades inteiras em nome da sua cultura, sua raça, sua religião ou sua nação?”

Segundo esse relato, seria possível dizer que tanto a fraternidade como a sororidade podem ser assumidas comoprincípios que regem as relações humanas. Por outro lado, mostram formas diferentes de tratar o conflito pelo reconhecimento dos direitos. Rita Segato sustenta que o pacto de sororidade…

... não é para nós, não é parcial, não é particular, não é da minoria, mas sim uma estratégia plenamente política e um projeto histórico deinteresse geral e valor universal, que, ao romper com a estrutura minoritária, introduz precisamente com base na sua perspectiva, outra resposta eoutra política. Cada vez mais demonstra-se que as estratégias criadas e postas em prática pelas mulheres são as que marcam o rumo e indicam ocaminho para todos.

A soronidade abre caminho em meio a uma história atormentada de mulheres na vida pública, nas decisões centrais, na condução das instituições e organizações. Podem existir expressões de ressentimento, que violentam comunidades; o que surge como novidade é essa condição de abertura universal que não quer deixar ninguém para trás, ninguém de fora, quenão quer nem descartadas nem descartados. Com base na sororidade, é possível reinterpretar aquela solidariedade universalde que fala o papa Francisco e aquela fraternidade universal que Chiara desvelou e que se redescobre na rede de ações de movimentos que se entrelaçam, unindo povos e culturas.

Postulamos com base nessa visão – e como ensaio o princípio de “sorofraternidade”. Nós o entendemos como um caminho programático e de condução de diversas visões e projetos. É um princípio que rege as relações até uma nova compreensão da institucionalidade política embasada na comunidade, na construção da paz e defesa da justiça. É um caminho reflexivo e ativo, que não suprime as diferenças, mas sim as respeita, estabelecendo relações de reciprocidade entre as e os atores que intervêm em múltiplos projetos e instâncias de organização compartilhada. Porém, não só gera responsabilidade e compromisso com o outro, mas também implica um modo de governar junto a outras e outros com base em uma visão comum (ainda que não sem lutas e defesa de interesses). A nova questão é: como incorporar o princípio de “sorofraternidade” na política? Por um lado, é um princípio político que abriga uma noção de poder que implica “poder-fazer-com-outros” um mundo mais justo, com qualidades e características diferentes das da fraternidade, tentando romper o enfoque dualista da realidade política (a favor ou contra); por outro, convida a repensar e redescobrir caminhos ou estratégias de resposta à pergunta anterior. Com base na perspectiva de Francisco e de Chiara, trata-se de conhecer quea diversidade é um desafio, porém também uma possibilidade potente para ação, pois trata-se de entrelaçar os diferentes coletivos (nossas e nossos) em um laboratório de práticas que nos unam como humanidade, reconhecendo a importância de sabermos que somos habitantes de uma “casa comum” e de um destino comum em âmbito local, regional, nacional e internacional.