Marcos Felyppe Oliveira Costa[1]

Natália Pontes de Albuquerque[2]

             Natural de Belém do Pará, dona Maria é uma mulher negra de 65 anos, filha de seu Joaquim e dona Ana. Seu pai faleceu quando Maria ainda era jovem. Ela então mudou-se com a mãe e os 7 irmãos para uma cidade do interior para trabalhar em uma fazenda. Sendo a mais velha, com 12 anos de idade passou a ajudar a mãe a ganhar o pão e cuidar dos irmãos. Trabalhou no roçado, em serviços domésticos e como babá desde.

            Ela chegou ao posto de saúde trazida pela sobrinha Marta porque voltou a “ter menstruação depois de muito tempo”. Dona Maria nunca tinha feito um exame preventivo do colo do útero. Ao ser examinada, percebeu-se uma lesão que precisou de biópsia. Dona Maria foi encaminhada e iniciou o tratamento.

Marta deu todo o apoio à tia. “Ela não teve filhos, mas cuidou da família inteira”, afirmou a sobrinha. “Se eu pude estudar mais um pouco, foi por causa dela; toda a família ama a Maria. Mas ela não gosta muito de médico. Só agora aceitou vir.” Marta, assim como a tia, usa exclusivamente o SUS (Sistema Único de Saúde) como forma de assistência médica.

Esse relato é fictício, mas foi inspirado em casos reais de pessoas que chegam aos serviços públicos de saúde pelo Brasil afora. Nosso país, um dos mais desiguais do mundo e com uma história marcada por violências, herdou uma profunda desigualdade no acesso ao direito humano básico de ter saúde. Nesse sentido, gostaríamos de refletir um pouco sobre algumas nuances políticas dessa história.

Dona Maria é uma mulher de baixa renda. Aposentou-se com salário mínimo e, portanto, recebe menos de mil reais por mês (porque tem que descontar os empréstimos que fez para ajudar os sobrinhos). Ela faz parte dos 71,5% da população brasileira que usa exclusivamente o SUS, segundo a Pesquisa Nacional de Saúde de 2019[i].

A doença que ela desenvolveu é rastreável pelo exame preventivo do colo do útero, realizado hoje em todos os postos de saúde do Brasil por enfermeiros(as), médicos(as) de família e generalistas e ginecologistas. Há 40 anos, quando dona Maria tinha 25 (idade para iniciar o rastreio), o SUS ainda não existia. Em seu trabalho informal, se ela adoecesse, só obteria atendimento em hospitais filantrópicos, que ajudavam muito, mas não davam conta da demanda de toda a população.

Mas por que dona Maria não procurou um posto de saúde? Ela ainda se recorda da primeira vez que foi ao ginecologista. O médico, ao examiná-la, tampou o nariz e disse sem qualquer cuidado que ela estava “muito fedida”. Prescreveu-lhe uma pomada, que ela não encontrou no posto. Sentindo-se humilhada, ela resolveu deixar para lá e tentar seguir a vida como sempre fizera. “Vai passar, como todas as outras vezes.” Um mês depois, ela foi internada com uma infecção complicada que ameaçou tirar-lhe a vida precocemente.

Entender a assistência à saúde como um direito humano até hoje não é realidade em todos os lugares do mundo. Para nós, brasileiros, a primeira Constituição a reconhecê-lo foi a de 1988, fruto de uma intensa organização social e política que envolveu movimentos sociais, sindicatos, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) ligadas à Igreja Católica, universidades e profissionais de saúde. Para garantir esse direito, nasceu o SUS, que é ainda um jovem.

O maior sistema público de saúde do mundo tem que dar conta de mais de 200 milhões de brasileiros e, para isso, ainda conta com um subfinanciamento crônico e diversas ameaças. Dentre os países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil é o único que tem mais gastos per capita em saúde privada do que gastos públicos, e possui a segunda menor porcentagem do Produto Interno Bruno (PIB) investida em saúde pública[ii].

            Mas se o sistema é o mesmo, por que dona Maria recebeu tratamentos tão diferentes em cidades diferentes? A gestão do SUS tem como um de seus princípios a regionalização e hierarquização. Isso quer dizer que cada município do país gerencia os recursos da saúde de acordo com sua realidade local.

            Uma das fragilidades é que não há gestores tecnicamente competentes para gerenciar todos os serviços municipais de saúde do Brasil. Há também problemas logísticos e estruturais para se fixarem profissionais em áreas distantes dos grandes centros urbanos. Além disso, são frequentes no noticiário as denúncias de corrupção, envolvendo o desvio de verbas da saúde não apenas por prefeitos, mas também parlamentares federais.

            Dona Maria foi atendida em Belém por uma equipe de Saúde da Família, com enfermeira especialista e uma médica de Família e Comunidade, treinadas para ofertar, para além de consultas, um atendimento humanizado e integral, atento também a questões familiares, raciais, sociais e históricas daqueles que adoecem.

            Ainda há muito a avançar, e um longo caminho a percorrer. Mas é essencial garantir o mesmo cuidado, com qualidade, competência técnica e acesso a tudo de bom que a ciência já produziu, em diálogo estreito com a autonomia e o saber popular, para toda a população brasileira. Para construir um Brasil melhor, é preciso antes superar tantas doenças de nossa sociedade. O projeto do SUS é nosso, e precisa de você também.

 

 

[1] Graduado em Medicina pela Universidade do Estado do Pará (UEPA); residente de Medicina de Família e Comunidade do Hospital Metropolitano Odilon Behrens, de Belo Horizonte.

[2] Graduada em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), médica de Família e Comunidade pelo Hospital Metropolitano Odilon Behrens, de Belo Horizonte; mestre em Saúde da Família pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

 [i]  IBGE. PNS 2019: sete em cada dez pessoas que procuram o mesmo serviço de saúde vão à rede pública. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/28793-pns-2019-sete-em-cada-dez-pessoas-que-procuram-o-mesmo-servico-de-saude-vao-a-rede-publica. Acesso em 31/07/2023.

[ii]  Agência Brasil. IBGE: despesas com saúde chegaram a R$ 711,4 bilhões em 2019. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2022-04/ibge-despesas-com-saude-chegaram-r-7114-bilhoes-em-2019. Acesso em 31/07/2023.