Erasto Fortes Mendonça

Doutor em Educação, membro do Comitê Gestor da Escola de Cidadania Ginetta Calliari

Font: Cidade Nova | Setembro 2022 – Um país sob o olhar da fraternidade

revista@cidadenova.org.br

Desigualdades, miséria e fome. E nós com isso?

 

OS ÍNDICES estatísticos, no Brasil, revelam o drama da desigualdade. São muitas as realidades em que a desigualdade se expressa, mas com certeza a sua face mais perversa é a da fome, que afeta, principalmente, as pessoas mais fragilizadas e periféricas. Vamos aos fatos. O Instituto DataFolha e a Fundação Getúlio Vargas publicaram pesquisas de junho de 2022 com constatações muito semelhantes em relação à situação de insegurança alimentar. Há evidências de que 1 em cada 4 brasileiros, ou 26% da população, vive em situação de falta de comida, percentual aumentado para 38% em relação a brasileiros com renda até dois salários mínimos e para 42% entre os desempregados. Em 14 Unidades da Federação (UF), mais de 40% da população vive na pobreza, sendo as regiões Norte e Nordeste as que abrigam o maior volume de falta de alimentos em casa. Na média brasileira, em 2021, a pobreza atingiu 62,9 milhões de brasileiros, quase um terço da população. Entre 2019 e 2021, o percentual de pobreza da população de 25 das 27 UF aumentou. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) confirma esses dados, ao demonstrar que, no período 2019/2021, mais de 60 milhões de brasileiros enfrentaram algum tipo de insegurança alimentar,  praticamente três em cada dez habitantes.

A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) nos atualiza com dados de 2022, indicando que 33,1 milhões de brasileiros passam fome, o equivalente a 15,5% da população. Em pouco mais de um ano, o país agregou 14 milhões de famintos.

O Brasil, que em função de políticas de inclusão e de estratégias de segurança alimentar havia saído do mapa da fome da FAO em 2014, em 2018 retornou ao quadro de prevalência de desnutrição. É inaceitável que um país que alimenta outros países permita que uma mãe deixe de comer para que seus filhos sejam alimentados. Chegamos a um nível de pobreza e miséria que famílias vendem seus parcos bens materiais, até mesmo um fogão, para comprar comida. A pergunta que devemos nos fazer é: por que no Brasil, com potencial para gerar alimentos para o mundo, parte expressiva de sua população passa fome?

Para responder a essa pergunta, devemos compreender que sair ou entrar no mapa da fome é um  movimento  que  indica  a  existência de políticas públicas ou a falta delas. Um sistema pode alterar e corrigir desigualdades, mas também pode perpetuá-las. A desigualdade no Brasil não é apenas uma questão conjuntural, mas resultado de processos históricos que a propiciaram. O país foi fundado na desigualdade, de modo que ela foi estruturando a nossa sociedade, impedindo que grupos tivessem acesso às condições de dignidade. Se não são criados sistemas de reparação, a lógica da opressão vai perpetuando-se. Em uma situação em que a miséria espalha-se cada vez mais na sociedade, não é admissível que aparatos de proteção sejam desmontados.

Atitudes individuais ou institucionais podem minorar provisoriamente essas situações. São inúmeros e devem ser aplaudidos os casos de doações ou acolhimentos como manifestações da caridade. Por outro lado, o enfrentamento  estrutural  dessa  condição   requer uma ação pública que supera o ato de amor individual.

Em fevereiro de 2021, a Assembleia Geral do Movimento dos Focolares aprovou o documento “A coragem de abraçar o mundo”. Nele, está expresso o compromisso de escutar  o  grito da humanidade a  fim  de  abraçar  e  enfrentar as suas causas. Ao pretender trabalhar para garantir uma vida digna a cada  ser  humano, uma pergunta nos é feita: “Quais são as causas sistêmicas que queremos eliminar e as ações estratégicas que podemos e devemos realizar para ajudar a superar as exclusões e promover o desenvolvimento integral de cada pessoa?”.

Responder adequadamente a  essa  pergunta exige que entremos no mundo da Política, aquela que é considerada “Amor dos Amores”, ou “a forma mais sublime da caridade”. Ao lado das atividades de benemerência individuais, o Estado não pode desertar de sua competência de gerar políticas públicas como resposta a um problema que é  igualmente  público  para  que se cumpram finalidades que visam ao bem comum. As políticas públicas orientam as ações dos governos e determinam quais recursos públicos precisam ser usados e para quem. Ainda que sejam políticas públicas dirigidas a grupos específicos, como as de  caráter  afirmativo  ou de resgate de exclusões historicamente constituídas, toda a sociedade delas se  beneficia, uma vez que promovem o bem-estar geral. Desigualdades, pobreza, miséria, insegurança alimentar e fome precisam ser objeto de políticas públicas que ataquem diretamente suas causas mais profundas.

Ditas assim, essas questões parecem muito distantes de nosso pequeno poder de simples cidadãos, já que as políticas públicas são definidas pelos governantes e legisladores. Cabe a nós, no entanto, compreender que parte de nossa cidadania ativa está no poder  de  escolha consciente e comprometida daqueles que terão a atribuição de definir quais políticas públicas devem ser mantidas ou modificadas, bem como quais novas políticas devem ser implantadas nos próximos anos. Somos nós quem escolhemos governantes e legisladores. Essa escolha precisa estar empenhada com a superação da miséria e da insegurança alimentar, de maneira que nosso voto seja dado a pessoas cuja história revele que colocam o bem de todos em primeiro lugar. Nosso voto e nossa participação depois das eleições, estando próximos dos representantes eleitos para auxiliar e cobrar essas políticas públicas, são as formas concretas de manifestar nosso compromisso com o grito dos excluídos e com a superação das causas sistêmicas da pobreza, da miséria e da fome.