A superação de problemas comuns e complexos das cidades

Chave de Leitura

Marconi Aurélio e Silva*

* Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É consultor, professor universitário do Centro Universitário Tabosa de Almeida (ASCES-UNITA), onde coordena o Eixo de Humanidades de seu Instituto de Estudos Avançados.

Font: Cidade Nova | Março 2023 – Você já tinha pensado nisso?

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     A iniciativa de unir cidades de diversos países em função de objetivos comuns também foi um dos motes de Chiara Lubich na esfera política.

RECENTEMENTE, foi lançado mais um livro sobre o famoso e mítico Giorgio La Pira. O título da obra em tradução literal seria A diplomacia das cidades: Giorgio La Pira e a Federação Mundial das Cidades Unidas (Polistampa, 2022). O livro ressalta justamente uma de suas iniciativas mais vanguardistas: a articulação mundial de cidades em um contexto no qual o federalismo estabeleceu clara divisão de funções entre diferentes unidades administrativas. Jornalista, professor e político italiano, La Pira inspira ainda hoje milhares de pessoas, com uma vasta agenda de valores, pensamentos e práticas civis por ele promovidos. Por duas vezes foi prefeito de Florença (1951-1958 e 1961-1965), ocasiões em que modernizou a administração municipal, reconstruiu a capital do Renascimento no pós-Guerra e promoveu a inclusão social em defesa dos trabalhadores e dos sem moradia.

Já em 1952, La Pira organizou o Congresso Internacional para a Paz e Civilização Cristã. Em sua concepção, tendo em vista superar as divisões entre Ocidente e Oriente vivenciadas na Guerra Fria, era necessário manter sistemáticos contatos entre políticos de todas as tendências políticas e países a fim de tecerem-se redes de colaboração. Tanto que, já no ano de 1955, prefeitos de diversas cidades do mundo assinaram, em Florença, um Pacto de Amizade. La Pira manteve interlocução direta com os governos socialistas da União Soviética e do Vietnã em busca da paz e do desarmamento, além de promover a prática das cidades geminadas (cidades irmãs) entre sua Florença e Filadélfia, Kiev, Fez e Reims. E mesmo concluindo o mandato como administrador municipal, La Pira prosseguiu seu trabalho em favor da paz, atuando na Federação Internacional das Cidades Unidas e em favor do diálogo entre políticos de religiões e tradições rivais.

A iniciativa de unir cidades de diversos países em função de objetivos comuns também foi um dos motes de Chiara Lubich na esfera política. Em 1959, falando para um grupo de pessoas de diferentes países reunidas nas Dolomitas, ela propôs uma espécie de altruísmo institucional global ao defender o lema “Amar a pátria dos outros como se fosse a própria”. Anos mais tarde, já no contexto da expansão da União Europeia para 25 países membros, durante o Congresso Mil cidades pela Europa, realizado em Innsbruck (Áustria), Lubich ofereceu sua experiência de promoção da fraternidade universal no meio político como contributo à construção de uma Europa formada por cidadãos ativos. Naquele ano de 2001, mais uma vez foi proposta uma relação aberta e inclusiva, universal. No ano seguinte, durante o primeiro Congresso da iniciativa Juntos pela Europa, Lubich defendeu a “Europa unida para um mundo unido”. Em 2005, na cidade de Rosário (Argentina), voltou-se para centenas de prefeitos sul-americanos ali reunidos, enviando-lhes mensagem sobre o papel das “Cidades pela Unidade”.

Enquanto as iniciativas de La Pira e de Lubich se voltaram para problemas mais globais – como a questão das guerras – na busca de elevar o protagonismo das cidades na esfera política, o espírito de uni-las para superar problemas comuns aos poucos decantou e se tornou cada vez mais frequente também no Brasil. Com o passar do tempo, as próprias políticas públicas de desenvolvimento tenderam a se voltar para intervenções regionalizadas. Mesmo no âmbito do municipalismo brasileiro, a promoção de consórcios intermunicipais tem ido ao encontro justamente desse esforço de identificar soluções para problemas complexos e comuns a diversas gestões municipais que, sozinhas, não poderiam superá-los.

Nesse sentido, a atualização do pacto federativo, do Estatuto das Cidades e dos demais marcos regulatórios que norteiam a atuação de unidades federativas e instituições voltadas ao desenvolvimento municipal e regional parece ser fundamental aos novos governos recém empossados no Brasil. É lógico que isso demanda uma governança compartilhada em múltiplos níveis, colaborativa, horizontal em rede. Nesse sentido, uma versão mais atual do lema da “unidade na diversidade” aplicada à formulação de políticas públicas é justamente a cogovernança, que pressupõe a corresponsabilidade não apenas dos atores políticos com mandato, mas sobretudo da participação ativa dos cidadãos nos processos decisórios sobre o rumo comum, tanto em termos municipais, quanto estaduais e federais.

O novo governo federal brasileiro já sinalizou inclusive quanto à retomada das conferências municipais, estaduais e federais voltadas à construção das agendas políticas prioritárias nessa próxima década. Como se sabe, a inserção de múltiplos interesses na formulação das políticas públicas as tornam mais assertivas e promotoras de ganhos conjuntos para os diferentes estratos sociais. E elas servem para fortalecer internamente uma região, um estado ou todo o País.

Nesse sentido, a dimensão altruísta e universal, bem ressaltada por La Pira e Lubich em tempos passados, pode ser muito útil ainda hoje à concertação dessas prioridades em favor dos mais necessitados, como também no sentido de abrir e conectar nossas cidades, estados e o Brasil como um todo às agendas que são prioritárias também para o mundo, a começar pela incorporação de pautas ligadas à mudança do clima, à produção sustentável e à harmonização das relações entre os seres humanos, suas comunidades e a natureza. A paradiplomacia e a atuação de organizações multilaterais como a ONU Habitat podem contribuir nesse caminho.

Tais pautas têm sido inclusive ressaltadas e atualizadas por outra liderança global: o papa Francisco. A Paz e a Unidade do planeta hoje passam justamente por valores que estão bem descritos em recentes documentos dele, como Fratelli tutti e Laudato si’.

Oxalá se multipliquem não apenas o conhecimento sobre tais princípios por toda a sociedade como também novas práticas e modos de intervir. Isso nos ajudará a renovar o próprio entendimento quanto à função das cidades no todo global, em um mundo crescentemente integrado. Esperemos que nossas cidades se tornem verdadeiros espaços que acolhem nossas melhores realizações e que conserve o rico legado de inovações em favor das vidas presentes e futuras!